Big Bands

Extremos opostos

Umland Records

Rui Eduardo Paes

Quando se utilizam os termos “big band” e “orquestra” nos domínios do jazz, imediatamente imaginamos um determinado modelo. Em dois discos agora publicados, a catalã Memoria Uno e a alemã The Dorf (foto acima) trocam-nos as voltas e oferecem perspectivas totalmente diferentes do que é improvisar com grandes formações. Ambas pertinentes e ambas magníficas.

Já há muito que a designação “big band” deixou de referir uma única fórmula musical na área do jazz, e eis aqui dois exemplos disso mesmo, editados este ano e sensivelmente na mesma altura: “Sons of Liberty – Live at Granollers”, pela Memoria Uno do catalão Iván González, e “Lux”, pela The Dorf, dirigida por Jan Klare e com o misterioso guitarrista alemão N como convidado especial. As respectivas músicas não podiam ser mais diferentes…

A Memoria Uno, nesta ocasião com 14 elementos (destacando-se figuras como Tom Chant, Albert Cirera, Christer Bothén, Pablo Rega, Agustí Fernández e Ramon Prats), continua os preceitos da “conduction” de Butch Morris e tem a London Improvisers Orchestra como referência, com a música a fluir entre a improvisação abstracta e experimental de carácter pontilhístico, um mais formal free jazz e toda uma série de importações da música contemporânea. González posiciona-se no papel de um organizador do caos, emoldurando as construções tímbricas que se vão desenvolvendo a par e passo, e tanto abrindo o espectro de contribuições sonoras, de tal modo que dezenas de pormenores vão emergindo em todas as direcções do espectro acústico, como fechando-o, tentando que os instrumentos formem cachos e estabeleçam relações, algumas delas contrapontísticas. É como se, numa mesma peça, se fosse de Morton Feldman à Sun Ra Arkestra.

A The Dorf, com os seus 25 elementos fixos, apresenta-se como autora do que designa por “utopian beats”, combinando aspectos do pós-rock, do krautrock, do noise, das músicas de transe e do jazz eléctrico, neste caso entrando ainda mais pelo psicadelismo e pela drone music de linha kosmische, graças à inclusão da guitarra massivamente processada por N. O único termo de comparação histórico do que se ouve é a Centipede de Keith Tippett, que envolveu na década de 1970 músicos dos Soft Machine, dos King Crimson (com Robert Fripp como produtor), dos Nucleus e dos Blossom Toes. Para além de Klare, que surge como encarregue do “movimento aéreo”, para não ser confundido com um convencional maestro, reconhecemos o nome de Julius Gabriel. Tudo se desenrola por meio de densas nuvens de harmónicos, delas despontando pulsações rítmicas tão claras nas suas métricas que se tornam estruturais, colando as improvisações e “compondo-as” a par e passo.

As abordagens da Memoria Uno e da The Dorf são tão distintas que não é, sequer, possível compará-las com alusão ao formato orquestral escolhido. É como se viessem de universos opostos, ainda que o jazz seja o mínimo denominador comum. Uma deflagra e a outra aglutina, numa não parece haver direcção mas a funcionalidade desta é a que mais se aproxima dos usos tradicionais, enquanto na outra, havendo condução, e uma condução que resulta inteiramente como composicional, o que a dita procura é desaparecer no turbilhão. O que ouvimos deixa-nos rendidos e até maravilhados, mas também com imensas interrogações (por exemplo: será que o gesto, a sinalética manual, pode mesmo substituir a partitura? e será que uma improvisação coordenada continua a ser uma improvisação, mesmo que o condutor também esteja a improvisar?), e isso só pode ser bom.

https://jazz.pt/ponto-escuta/2017/10/26/extremos-opostos/

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